quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Título em vermelho.

Estava pensando em um texto para retomar as atividades desse blog. Sobre o que escrever? Lembro de quando escolhemos o título deste site -- e como foi difícil escolher -- que tinha por finalidade expor um sentimento mútuo. Enfim tínhamos chegado a um: falanges canibais. Falanges que devoram a caneta ou o lápis, ou as palavras.
Eu tinha naquele tempo a sensação que poderia escrever sobre quaisquer coisas, a sensação de carregar no olho aquela sensibilidade para com o cotidiano. Transformar asfalto em linhas, pés em palavras, pessoas em contos, a rua em uma história. O que é contar uma história? O que é escrever sensivelmente sobre o perceptível? Ingenuamente pensei que era traduzir em palavras aquilo que era posto em imagens, em palavras que não possuíam o teor de descrição é claro, mas ainda assim traduziriam.
Não era isso.
Falanges canibais... vejo que não é à toa que concordei com o nome. Canibal é uma palavra cruel, fala daquilo que se alimenta da própria substancia. Insetos que comem insetos, animais que comem animais, humanos que comem humanos. As falanges só comeriam o lápis, o papel, ou as palavras, se encontram lá em abundancia a própria substancia, a própria carne.

De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito. (Zaratustra)

Aí está a dificuldade de escrever com tais falanges. Com elas se abre a carne e ainda mostra seu sangue. Nem todo sangue que sairá é daquele vermelho forte, daqueles que alguns vestem em roupas, dirigem em carros ou beijam em bocas. Há o risco de usar o sangue para escrever e as palavras saírem azuis, pretas; pastosas ou finas demais. Há o risco de não ter sangue, de ficar entupido nas veias, ou sangue demais a rasgar o papel.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A Mulher e o Mar


     Oh mar, por que tiveste que me abandonar? A ti hoje só minhas lágrimas vertem, traçando sobre minha face lânguida Estige e Aqueronte, d’onde navegas flácida apenas minh’alma sem moeda de prata ou remo. Temo por ela, tão delicada, a queda em tuas tormentas, visto que tua lembrança já sorrisos e viço me salga. É o que de ti me resta, o brasido de teu sal e farsa, pavor e paixão, brandura quimérica.

     Que me tomes então, me leva, meu corpo já antes era tua morada, te restas tomar os pulmões. Isso, ousa, me embebe, em teu âmago me encherei de vida, farei-a prosperar. Talvez lá pequenos animais me façam fruto ou berço, tomando-me até os ouvidos que já tanto tomara com teu pranto raso, lembro, só eu o ouvia enquanto choroso investia em vão sobre a terra, assistia, para catar desta tudo que nela perdera, cada pedra impar, cada concha para tantos outros frívola. E tudo que te devolvera oh, ingrato mar? Tantas as joias que me recusara a carregar nos bolsos, valor para mim tinham no fundo de tuas águas. Teus abismos seriam tão mais profundos não fossem minhas mãos tão dedicadas, saiba, com que te faltei então? Já não sei. Eis ingrato afinal.

     Decida-te então ou decido eu, é hora, me engoles ou tentarei engoli-lo eu, te beberei com a sede de milhares de teus náufragos nauseabundos, queime-me os olhos ou cinda-me a boca, o tentarei beber, farei de cada soberba gota tua sorvida minha própria, mar, e caso não consigas te expurgar, o tomarei, o desbravarei à braço porque ainda te amo e tanto o cobiço, então machuca-me o corpo enquanto podes antes que veja, amanhã, o sol posto emergir no oeste, de minha vontade indômita.


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Paisagem da Minha Janela


     Eu já via constelações de minha janela. Elas luziam através das vidraças de um arranha-céu que não inibia o meu crepúsculo, entrecortado por prédios de mesma alcunha austera e mentirosa que serviam apenas para trazer-me cedo mais estrelas e molduras para o meu anoitecer. Ah, e como ele fora generoso comigo, envaideceu minha cidade, escondendo suas rugas mais horrendas e imperfeições mais sutis. Mas, enquanto trafegava-as, o que me inquietava?! Algo me atraiu então o olhar, agora teso. Fitava o horizonte além d’onde concreto e aço podiam tocar, foi quando então notei, enquanto ninguém mais o via: um espelho pairava.

     Nele vi um João-De-Barro. Num instante, pareceu, construíra de esperanças sua casa no alto da mais alta árvore, soerguida sobre as mais profundas raízes. Nada dali via, enquanto imerso no copado mais sombrio. Nada além de sua fornalha ali existia. Sequer luz, nada, tudo precisara enxergar em moldes de fantasia, tudo, folhas, frutos, estrelas, molduras... Eram minhas, dei-me conta, minhas estrelas! Estas, que tanto já me encantaram, haviam sumido de meu céu que, naquele instante, encobria de véu pálido minha noite antes viva, nem lágrima através de si reluzia, então, sepultada em silêncio sobre a penumbra das luzes que a afrontavam, ela passava, sem brilho. Estava morta e corria há tempos. Logo não havia arte a ser imortalizada por hastes e vigas, minha natureza cotidiana era exânime, me contara a lua enquanto vagueava. Sim, ela atreveu-se. Uma noite mais, banhada de beleza e verdade, ela atreveu-se e, por isso, eu verdadeiramente a amava, a amava e por sobre ela saltei. Saltei do mais alto ramo, saltei de meu ônibus enquanto, como todos nele, nada esboçava, mas enquanto o fazia um espelho se partia, sentia. Uma ilusão morria enquanto agora caminhava sobre os ossos da cidade que, naquele instante, detestava enquanto meu coração me dizia: Mereces vida, precisamos partir!

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A noite que nos falta

Estória simples. Homem e mulher, um ao lado do outro, caminhando na beira da noite. A sós, cultivam um silêncio já de alguns minutos.



— Acho que são esses momentos.
— O quê?
— Esses assim.
— Hum? Do que você ‘tá falando?
— Sabe, tem momentos que simplesmente não poderiam ser desperdiçados. São nessas horas que eles acontecem. Imagine comigo, imagine uma noite, após um dia longo. Você está em casa, ou em algum outro lugar confortável, tranquilo, esperando nada; talvez o sono. Mas nesse intervalo não há nada a se fazer, nada de imediato. Ah!, você está só, esqueci de dizer. Além de não ter o que fazer, não tem com quem falar, nem uma viva alma. O telefone não toca e você não tem pra quem ligar pois já é tarde; não seria educado. Imagine essa cena que acabei de lhe dizer. O que você acha?
— Realmente não sei aonde você quer chegar.
— Vamos, faça um esforço! É tão difícil se imaginar nessa situação? Pois vou lhe dizer. Quando isso acontece, eu sinto que tudo foi um grande desperdício, as coisas perdem o sentido; falo das coisas banais, aquelas do cotidiano que se qualquer um parasse por alguns minutos e se esforçasse não entenderia a lógica, nem o motivo, do por que continuam com aquilo. Sério, não me olhe assim, prometo-te que não será tão triste. Veja bem, são nesses momentos azuis que você invariavelmente pensa em coisas. Coisas, sabe? Aquilo que você fez durante o dia de ontem, de hoje... Não! Não só isso. Droga, olhe pra essa noite, ela não te instiga? Não te alimenta um desejo autêntico, verdadeiro? Pois sempre que a vejo assim, tão noturna, tão calada, minha vontade é de preenchê-la com algo bom. Penso em fugir. Você nunca? Vamos!, não me diga que não quer fugir agora?
— Fugir? Mas fugir pra onde? E pra fazer o quê?
— Pouco importa! A vontade de fugir nunca foi acompanhada de um lugar (a)final. Não conheço quem deseje fugir para o Chile, ou para Belo Horizonte, ou pro bairro vizinho, pelo menos não necessariamente. A vontade de fugir é órfã e nômade. Pensando bem, às vezes nem acho que fugir seja a palavra certa. Não, não é. Tenho outra melhor agora. Não é fugir de algo, mas a paixão de começar alguma coisa. Como se de repente a noite fosse nossa, a vida fosse nossa o que é engraçado, pois ela de fato é como um brinquedo.
— Você anda pensando demais, sabia? Acho que já está bom assim do jeito que é. E tem mais, já é tarde, estou cansada, ninguém vai a lugar algum a essa hora, só para casa.
 
Novamente silêncio. Suspiro.
Ele diminui seu passo.
Ela vai embora.
Nada mais.
É dia.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Expectadores

Sinto que meu mal é pensar muito nos outros. Não digo com isso que sou uma boa alma que se preocupa e cuida dos semelhantes. Não, não é isso. Falo do costume de gastar as horas elaborando pensamentos acerca daquele sujeito, ou da maneira que aquela moça talvez passe seus dias, como reagiria diante de surpresas, como seria o dia de ambos, um dia comum, e como seria um dia especial, como reagiriam afinal?


Com esse pequeno costume é fácil tornar-se uma pessoa observadora, atenta e mais ou menos intuitiva — não há mistérios quanto a isso. Mas há um “porém”, um pequeno problema para quem vive de observar, que aos poucos, se não tomadas as medidas preventivas, deixa de ser pequeno e vai tomando formas cada vez maiores: esperança. Esperança no sentido de “esperar”. Quanto mais se observa os outros, e as situações, naturalmente mais expectativas são impostas a eles e paulatinamente a realidade vai demonstrando que você, meu caro, estava errado, talvez desde sempre. Toda a fé que um dia depositaste em algumas pessoas que o circundava mostrou-se incoerente, infrutífera e o único caminho que ela o levou foi o da traição. Mas escute, traição tua contigo mesmo; o outro nunca o traiu, afinal nunca lhe prometeu nada, nem podia, pois não lhe foi dada a oportunidade.

Talvez seja este o karma dos expectadores — permita-me o neologismo —, de estarem fadados ao engano, aos vários questionamentos os quais, um deles, é: “O que deixei de perceber?”. A resposta nunca é descoberta. Quando algo se furta de suas previsões, sente-se um gosto ferroso de frustração, esta que se repete e caminha ao lado da esperança — tudo bem que em certos momentos não a vemos caminharem juntas, mas se tem de reconhecer que são velhas amigas.

Expectadores vivem em dois mundos: um onde se imagina, outro em que se vive, mas não sabem qual desses deveria ser chamado de casa. Fico à vontade então para usar um trecho da poesia de Fernando Pessoa chamada "sentimental":

[...]
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

***
E o que eu quero dizendo isso tudo? Nada, foi apenas uma observação.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Aos Jovens Senis...

A vida vos trouxe cedo a experiência, não a dita "idade", saiba, eu vos tento trazer então o conforto.


     Regozije-se, és VELHO! És aquele que troca noites de dita "farra" por boas companhias (tão velhas quanto tu), boa música (porém não alta, não suportas mais tanto alarido, mesmo de teus ídolos), boas bebidas (agora sabes saborear, tens o paladar seletivo, dadivoso, mesmo tendo sido nunca antes respeitado, forçado a provar coisas que tu sequer suportavas, admita), até a fumaça intermitente de cigarros alheios, comum aos ambientes que frequentas, não te é desagradável, impregna tuas roupas, mas não tua alma, saturada de, mesmo que curtos, bons instantes. Sim, alma, amor, vida, tu falas dessas trivialidades sem contudo parecer trivial, respeitas todo sentimento que o apetece com a mais pura candura do sincero aprendiz que a nada questiona, deslumbrado, mas não porque és ingênuo, pelo contrário, és sábio, reconheceu cedo teu mundo e o abraçou, protege-o assim como as poucas verdades que crê ter encontrado durante teus escassos e longos anos de vida, estes que tendes a aproveitar durante seu alvorecer, visto que no sol enxergas acalento e na lua beleza, não calendário da soma de satélite e astro, respeitas e vê neles símbolos, signifiquem estes para tu o que bem enxergas.

     Pra ti o tempo é coadjuvante, frívolo em meio à felicidade que ensaia seu ato final, longínquo, em cada singelo momento que tens para teu âmago e para o mundo em meio às vicissitudes do cotidiano e da rotina, algo que só és capaz de vislumbrar porque tens tua sanidade plena e tua energia criadora, por isso peço-te em tom de rogo: não abdica de tua juventude. Aproveita esta fase, acresce-a a tua velhice pois hoje tens o necessário para realizar teus sonhos em um mundo que te tenta tolher esse direito, seja ele qual for. Vê o mundo se é o que preferes, mas volta a teu recante ou o reconstrói onde for, respeitando assim tua "idade". Sente-se e apenas maldiga tuas dores, mas cauteriza tuas feridas enquanto aprendes com elas. Ou até mesmo ame, mas sê sincero com quem é digno de teu amor antes que ele passe assim como tu passas, visto que é velho. De todo modo experimente, envelhece todos os dias conforme vive, e vive intensamente como só um jovem o faz, serás então pleno, creio, mas se não crês em mim, crê em Nelson Rodrigues, jornalista, dramaturgo e menino que, quando perguntado por um jornalista sobre um conselho que daria a juventude, simplesmente responde: "ENVELHEÇAM!".

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Notas de um homem qualquer


"A kind of Loving", Jack Vettriano (1951- ).

O que mais atrai numa mulher não é seu corpo. Nos homens muito se divulga a ideia de que o corpo feminino, ou a imagem da mulher, é o que agita a paixão no homem. “Os homens são atraídos pela imagem, pela visão”. Tolices. O que afeta o homem não é somente a imagem estática e infértil. Esta não se diferencia de uma estátua sem vida de mármore que, inutilmente, tem como objetivo definido pelo seu criador representar a sua musa, que é de carne e osso, ou uma fantasia real. Pelas estátuas também nos apaixonamos, mas o amor não vem do rígido corpo de pedra. A paixão surge de uma ideia. Seja na estátua, seja na mulher, ela surge de uma centelha de poesia.
Não somos atraídos pela imagem, mas pela promessa. Em cada mulher não percebemos somente um corpo, mas o seu efeito em nossas almas. Seu efeito no mundo e no clima. Existem aquelas que nos prometem uma vida frouxa, de prazeres praianos e amores ensolarados. Existem as que nos prometem elas próprias em sua autenticidade, sua simplicidade como mulheres normais que são, mas inundadas de carinho e ternura. Outras ainda nos atormentam com a ideia da incerteza, da eterna sedução que a todo o momento nos bota em prova, nos tira do eixo e nos põe a sempre duvidar de nós, sempre nos medirmos — essas são aquelas que nos aperta em incertezas e que a mim afetam mais destruidosamente. Há as novas, aquelas que repentinamente aparecem, saídas de algum lugar conhecido ou do longínquo (não importa), abrindo-nos novidades sem nexo, mas que de ímpeto nos vem a certeza de que algo é possível, não se sabe o quê, mas há este sentimento — a estas meus mais sinceros carinhos e sorrisos, pois são a chave e porta da fé de que nunca é o fim, nunca é o suficiente, há sempre mudanças.
Todas essas me atingem como se me mobilizassem. São meu percalço. De mim tiram toda energia e agradeço por isso, pois se não fossem elas, eu seria nada mais que carcaça. No meio desse labirinto de sentimentos e certezas incertas me encontro; quando não, perco-me de propósito. Ao mesmo tempo em que o inconcreto me paralisa diante de escolhas, é somente ele que me aponta caminhos.